Córtex está disponível na loja da Boteco Editorial (impresso) e no site da Amazon (em e-book, gratuito para assinantes do Kindle Unlimited).
Entrevista com Marina Odo, autora de Córtex
2 de agosto de 2025
A nossa primeira publicação selecionada por edital é uma distopia inteligente e original.

🧠 Vamos começar pela obra?
Boteco: De onde veio a ideia de uma doença que transforma impulsos em realidade? Há algo no nosso cotidiano que te inspirou nesse conceito?
Marina: Estava conversando com uma amiga minha, que é a mais velha de três irmãs. Ela comentou comigo sobre um episódio de quando foi ao mercado e uma das irmãs, bem pequena na época, começou a tumultuar. Ela desejou mal a essa irmã (não lembro exatamente o quê, para ser sincera, mas devia ser algo como "tomara que caia do carrinho pra ver se aprende"). Enfim, o motivo não foi o que marcou. Na verdade, o que me marcou foi ela não ter esquecido disso e isso a incomodar anos depois, a ponto de comentar comigo. Porque, veja, nem aconteceu nada de ruim com a irmã, mas ela disse que podia ter acontecido e que, se tivesse acontecido, ela não conseguiria perdoar a si mesma. Aquilo ficou na minha cabeça. Fiquei pensando na quantidade de vezes que pensamos em algo ruim por impulso e que, realmente, se virasse realidade, seria assustador. Foi aí que escrevi um conto: "Dias atuais" e o retorno que tive foi tão bom, que disseram que devia usar a ideia para escrever um livro. E aí, bom, o resto já sabem.
Boteco: A ambientação distópica de Córtex dialoga com o Brasil real — especialmente com o colapso de políticas públicas e o recrudescimento da violência. Quais críticas sociais você quis evidenciar através dessa história?
Marina: Acredito que nós, seres humanos, estamos à beira de um colapso. Tudo em volta colabora para exacerbar nossa ansiedade e trazer pensamentos caóticos. Seja a situação econômica onde se alimentar é luxo, seja a exposição diária à violência que nos deixa em estado de alerta o tempo todo, seja a pressão no trabalho e na vida pessoal que parecem te proibir de fracassar. Tudo faz estarmos no modo "ataque", sempre esperando o pior do outro, e, infelizmente, cada vez mais, oferecendo nosso "pior" também, como ato de defesa. É triste perceber que um ato de gentileza causa até surpresa. Não devia ser a exceção, mas gentilezas sem absolutamente nada em troca são cada vez mais raras.
Boteco: Em Córtex, o corpo, o pensamento e a realidade parecem estar em constante atrito. Você sente que o livro é, de certa forma, também uma metáfora sobre viver sendo mulher no Brasil?
Marina: Eu sou feminista declarada. Toda mulher deveria ser e me causa profunda tristeza quando uma mulher, que claramente foi influenciada e não sabe o que é feminismo, fala mal do movimento. Mas não foi meu intuito com o livro trazer uma metáfora sobre viver sendo mulher no Brasil, não. Porque, neste livro, quis falar do ser humano mesmo. Nós todos, homens ou mulheres, estamos adoecendo. Há cada vez mais casos de burnout, de transtornos de ansiedade,... estamos tentando dar conta de tudo sem conseguir olhar para dentro. Isso parece criar uma certa combustão. Uma hora a coisa toda explode.
Boteco: Como você enxerga a recepção da obra até agora? Já recebeu algum retorno de leitoras ou leitores que te surpreendeu?
Marina:
Tenho tido um retorno extremamente positivo. Já teve leitora dizendo que foi uma das melhores distopias que ela já leu e isso, para mim, é absurdamente incrível. Há tantas distopias excelentes e famosas por aí! Além disso, percebo que a maioria dos leitores comenta sobre a originalidade da obra (o que me deixa feliz, pois, realmente, há mais do mesmo em todo lugar e eu queria fazer algo diferente) e que foi um livro que trouxe profundas reflexões.
🧠 Vamos falar da autora?
Boteco: Antes de Córtex, você já havia publicado a novela (des) construção, contos em Para o caos, basta um sopro e livros infantis. Como essas diferentes formas de escrita se alimentam dentro de você?
Marina: Percebi que gosto de explorar escritas diferentes. Venho do Teatro, sabe? Tinha como hábito criar cenas e cheguei a escrever peças logo que me formei. Aí me interessei muito por roteiro e fiz cursos de Teledramaturgia. Fui assistente de roteiro da Eva Furnari em uma minissérie infantil ("Godofredo"), que chegou a ir ao ar, inclusive. Foi uma experiência marcante e o universo infantil sempre me agradou, então quando minha primeira filha nasceu, veio a vontade de ler um livro meu para ela. A partir daí me encontrei na Literatura. Mas não me canso de explorar possibilidades e gêneros diferentes. Além do que, escrever, como sempre digo, é minha válvula de escape. É o que faço por prazer mesmo.
Boteco: Há um fio condutor temático ou afetivo que você percebe unindo todas as suas obras?
Marina: A maternidade. Não é de propósito, não mesmo, mas a maioria das obras tem a figura materna. Parando aqui para pensar, quando lancei "Bruxa ou fada?" (era uma história que eu tinha na gaveta e que me fez ter vontade de lançar quando minha filha mais velha nasceu), nela não tem uma mãe. No entanto, a personagem principal do livro, Violeta, vira mãe no livro seguinte: "Em 1 cansa, 2 até alivia, mas 3 é só alegria!" e no livro "O sapo" é ela quem está contando a história para o filho dormir. Ou seja, mesmo nos livros infantis, o maternar está sempre ali. Em "(des)construção" a personagem principal é uma robô que tem como "tarefa" ser mãe. Em "Córtex", a personagem principal é uma mãe... Até em um conto hot que escrevi, a personagem é mãe. Realmente, acho que é uma parte de mim que passo para as histórias que escrevo.
Boteco: Qual seu processo criativo? Você tem rituais, manias ou hábitos de escrita? Escreve todos os dias? Espera o caos bater?
Marina: Não tenho o hábito de escrever sempre, mas é uma boa prática, sem dúvida. O que faço com frequência é ler bastante, me influenciar positivamente por autores que admiro. Também anoto as ideias que surgem ou alguma manchete de jornal que pode inspirar uma história e envio para o meu e-mail para acessar quando a vontade de escrever algo novo bater. Como procrastinar é sempre um problema, vejo que produzo bem quando tenho prazos e temas específicos, por isso que participei de tantas antologias.
🧠 E o tal do mercado?
Boteco: Você foi a primeira autora publicada via seleção tradicional da Boteco Editorial, que tem um catálogo de terror e especulativo com forte crítica social. Como foi esse processo de seleção e como tem sido sua experiência com a editora?
Marina: Eu já conhecia (e admirava muito) a escrita da Ellen e do Andre, por conta das antologias que participamos. Virei fã da Boteco quando li "Boteco Maldito", tanto que uma das melhores surpresas literárias que tive foi ter um conto selecionado para o "Patrão, me vê a conta" (foi realmente um momento de muita alegria ingressar no mundinho do Perpétuo). Quando estava finalizando "Córtex", cheguei a enviar para os dois para uma opinião mesmo, como leitores beta. Ainda não tinha segundas intenções, até porque, se não estiver enganada, nessa época a editora nem tinha aberto ainda para receber originais. Mas quando decidi que era hora de publicar e soube que iam começar a receber narrativas longas, entrei em contato e submeti o original. Talvez por ter tantos autores na equipe da Boteco, a editora é realmente parceira. Infelizmente, é muito comum "editoras" que, ao invés de jogar junto, só exploram o autor. É muito gratificante ter meu livro publicado em uma editora que acredita no meu trabalho e que eu possa confiar.
Boteco: Como você enxerga o cenário das pequenas editoras e da ficção especulativa no Brasil hoje? Há espaço para ousar?
Marina: Acredito nesse crescimento das pequenas editoras por conta, principalmente, do aumento da procura por livros digitais. Hoje em dia um escritor não precisa ser publicado por uma grande editora para ter seu livro lido. Existem milhares de leitores adquirindo Kindle, fazendo assinatura do Kindle Unlimited e acho que isso é uma vantagem para essas editoras que não conseguiriam ter livros expostos em uma livraria, mas que podem expandir e ficar reconhecidas no mundo virtual. Mas sobre ousar, tenho a impressão que vale mais a pena escolher um nicho literário ao invés de receber tudo quanto é tipo de gênero. Editoras pequenas que abraçam o mundo me dão a impressão de estarem só interessadas em vender aqueles exemplares que o autor inevitavelmente acaba conseguindo vender para amigos e familiares, mas não existe uma aposta real na obra. Até para o leitor fica confuso seguir uma editora que publica de tudo um pouco. Gosto da Boteco ser bem focada em seus propósitos.
Boteco: Que conselhos você daria para outras autoras que estão começando e desejam publicar obras fora do mainstream?
Marina: Publiquem! Mesmo com receio, mesmo se achar que não tá bom o suficiente ou que ninguém vai ler, porque não é o estilo que alcança a população geral... Só faça sem esperar aprovação. Se encaixar no mercado ou no que está em alta, pode tirar a sua verdade. Particularmente, acho que é, inclusive, uma vantagem sair do óbvio. Como leitora, gosto de leituras que proporcionem algo original. Vejo que a Boteco também, então: autoras, submetam seus originais para a Boteco Editorial!
🧠 O feminismo e a classificação das obras.
Boteco: Seu trabalho costuma ser classificado como “feminista”. Isso te representa? Te incomoda? Há alguma nuance que você gostaria que fosse melhor compreendida?
Marina: Acredito que acabou sendo classificado assim por conta do "(des)construção", cuja trama toda é uma crítica ao machismo estrutural. Não me incomoda, até porque, é um movimento que eu defendo com afinco, mas não constitui o meu trabalho. Busco fazer diversas críticas sociais.
Boteco: Em Córtex e (des) construção, a protagonista é uma marcante personagem feminina, lidando com autonomia, opressão, raiva e sobrevivência. Isso é proposital? Que tipo de representatividade te interessa construir?
Marina: Suponho que seja comum que escritores, ao criarem um personagem, coloquem um pouco de si mesmos ali, naquele mundo. Acabou que em ambos, a protagonista é uma mãe. Eu sou mãe de duas meninas, acho que isso refletiu de maneira não proposital, mas quase que orgânica mesmo, entende? Como mulher, tenho muito receio da violência que elas possam sofrer e quero que possam se espelhar em protagonistas fortes, que lutem pelo que acreditam.
Boteco: Existe algum tipo de leitor ou leitora que você gostaria muito que lesse seus livros — mesmo que, em tese, não fosse o “público esperado”?
Marina: Fiquei muito emocionada quando recebi o relato da minha tia-avó sobre o meu livro. Havia enviado para a residência dela de presente, mas ela acaba de completar 100 anos, e, embora seja extremamente culta e tenha uma ótima cabeça para a idade, gente, 100 anos, sabe? E ela realmente leu e ficou quase uma hora comigo ao telefone falando todas as impressões e me contando que ia emprestar para as amigas dela, porque certamente elas iam adorar ler também. Quando que eu imaginei senhorinhas lendo "Córtex"? Nunca. Seria muito bom continuar a atingir essa ampla faixa etária.
🧠 Sobre referências e influências.
Boteco: Quais autoras, autores ou obras marcaram sua formação como escritora?
Marina: Gosto muito da escrita do Chuck Palahniuk e do Raphael Montes. Quando comecei a escrever, minha busca era em tentar manter o ritmo que eles conseguem passar nos livros. Queria uma leitura fluida, que fosse "fácil" de ler, e que pudesse ter uma pegada crítica (como a do Chuck) e envolvente (como a do Raphael). Depois, conforme fui participando de antologias, fui conhecendo escritores independentes cuja escrita admiro e procuro absorver para me aperfeiçoar e escrever tão bem quanto.
Boteco: Você se sente parte de uma tradição ou geração literária? Há nomes contemporâneos com os quais você dialoga ou gostaria de dialogar?
Marina: Sim, desde que comecei a escrever e participar de antologias, fui seguindo e conhecendo novos autores e descobrindo toda essa geração de escritores independentes, que é, simplesmente, sensacional. Como já citei antes, a Ellen Reys e o Andre Braga têm uma escrita que eu sou muito fã, assim como tantos outros autores nacionais (Érika Lyrio, Alvaro Rodrigues, Nadezehda Bezerra, Márcia Arantes, Thiago Barrozo, Jaslin Alexandra, Gabriel Carvalho, Amanda Kraft, Jeferson Gomes, Sheise Piezentini, Leandro Coelho,...) que poderia passar um tempão comentando e que todo mundo devia ler.
🧠 E o nosso brinde de saideira.
Boteco: Se você pudesse criar um efeito da doença de Córtex agora — algo impulsivo que virasse realidade — o que aconteceria neste exato instante?
Marina:
Nossa, pior que eu voltei do almoço à pouco e estava vendo alguns comentários sobre a tornozeleira eletrônica e relatos de pessoas que sofreram muito na pandemia com o atraso das vacinas (pois perderam entes queridos) e confesso que pensei: "Espero que apodreça na cadeia". Mas, não, não desejo isso racionalmente falando. Foi só um pensamento impulsivo que veio. Não simpatizo nem um pouco com a figura em questão, mas só quero que a justiça seja feita mesmo, não precisaria ser algo extremo e literal a esse ponto, rs. Quem leu o livro, sabe que é esse o problema: os pensamentos impulsivos quase nunca são positivos, não é? Porque, juro, bem que eu queria poder pensar em acabar com a fome, com as desigualdades sociais e com as guerras e, puf, virar realidade. Isso eu penso, claro (e muito, por sinal), mas sempre é com muita reflexão e debate.
Boteco: Para quem ainda não conhece Marina Odo, como você descreveria seus livros em uma frase?
Marina:
É uma leitura que incomoda, no bom sentido.
Boteco: O que vem por aí? Já está trabalhando em um novo projeto?
Marina: Não, nada mesmo. Até penso em publicar uma outra coletânea de contos no futuro, mas por enquanto estou focada em divulgar o "Córtex" e alcançar mais leitores.







